A morte nos faz cair em seu alçapão, / É uma mão que nos agarra / E nunca mais nos solta. / A morte para todos faz capa escura, / E faz da terra uma toalha; / Sem distinção ela nos serve, / Põe os segredos a descoberto, / A morte liberta o escravo, / A morte submete rei e papa / E paga a cada um seu salário, / E devolve ao pobre o que ele perde / E toma do rico o que ele abocanha.
(Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII. São Paulo : Ateliê Editorial / Editora Imaginário, 1996. 50, vv. 361-372)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Cemitério dos Pretos Novos - Morte nos porões da barbárie

Os segredos do cemitério de escravos no caminho da Gamboa, zona portuária, no centro do Rio de Janeiro.



IMAGENS DE UM GENOCÍDIO. Ossadas de negros encontradas em escavações na Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro. Foto disponível em 01/02/2010 no site: http://www.sintufrj.org.br/PORTALII/cemiteriodosPretosNovos.htm





Do site do SINTUFRJ - Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, portal II, seção arte/foto [Notícias on-line] - Cemitério dos Pretos Novos. [ http://www.sintufrj.org.br/PortalII/index.htm ]




O sonho de voltar para junto dos seus antepassados, na África, não se concretizou nem mesmo depois da morte para 6.119 negros trazidos à força no século XIX para serem vendidos em leilões na Rua Direita, atual Primeiro de Março. A morte nos porões dos navios negreiros ou à luz do dia, diante da multidão, quando doentes e atordoados eram arrastados ao mercado de escravos tão logo desembarcavam no Porto do Rio de Janeiro, apenas garantiu a esses africanos morrer antes de serem escravizados no Brasil.

Pela tradição religiosa dos negros bantos, cultuada por esse contingente de africanos, vindos de várias partes da África Central, como Luanda, Moçambique, Bengala, Congo, o sepultamento em cova funda era parte importante do ritual para o retorno ao seu continente e o reencontro com os entes queridos. Mas o destino final daqueles que não resistiam aos sofrimentos da viagem era uma área de 110 m2, situada no antigo caminho da Gamboa, conhecida como a Rua do Cemitério, mais tarde Rua da Harmonia, hoje Rua Pedro Ernesto.


Fotos disponíveis em 01/02/2010 no site: http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_sitio_arqueo_pretos_novos.shtm

Ali, à flor da terra, os corpos nus eram jogados uns sobre os outros e queimados uma vez por semana. Desde 1996, jazem em uma caixa de papelão no Instituto de Arqueologia Brasileiro (IAB) fragmentos de ossos que correspondem a 28 esqueletos completos de pretos novos, os recém-chegados da África, cuja idade variava entre 3 e 25 anos, do sexo masculino e feminino.


Cemitério foi descoberto por acaso


A confirmação da existência do Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro, o único do qual se tem notícia na América, só foi possível graças ao voluntarismo do casal Ana Maria Merced e Petrúcio Guimarães, e às pesquisas de Júlio César Medeiros da Silva Pereira, na época um estudante de História da Uerj, atualmente mestre em História Social pela UFRJ. Proprietários da casa nº 36 na Rua Pedro Ernesto – uma típica construção do século XVIII, sem banheiro e rede de esgoto, que abrigou famílias pobres e negros libertos, na zona portuária –, Merced e Petrúcio iniciaram, em 1996, escavações para colocação de estruturas de ferro que permitiria construir cômodos em cima. Mas para espanto dos pedreiros, ossos misturados a fragmentos, tais como miçangas de vidro, artefatos de ferro e pedaços de cerâmica, começaram a saltar da terra. “A firma de engenharia que fez a sondagem do solo constatou que de 20 cm a dois metros de profundidade só tinha ossos”, contou Merced.

Foto disponível em 01/02/2010 no site: http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_sitio_arqueo_pretos_novos.shtm

E a lenda que corria de que no bairro existiu um cemitério de escravos se confirmou. O achado foi informado à Prefeitura e, através de mapas antigos do município, duas arqueólogas constataram que abaixo não só da casa dos Guimarães, como numa área de 110 m2, centenas de africanos encontraram sua última morada. As pesquisas de Júlio César, primeiro para a monografia e depois para a dissertação de mestrado, complementaram a informação histórica: de 1779 a 1831, 6.119 corpos de “pretos novos” foram enterrados naquele local. “No Museu da Cúria Metropolitana encontrei um livro de óbitos da Freguesia de Santa Rita, que respondia à época pelo cemitério, onde estão registrados os nomes dos navios, as nações ou os portos de origem, os donos e as idades dos ‘escravos novos’ desse período, e até as marcas que recebiam nos navios negreiros”, confirmou o historiador, que se uniu a Merced e Petrúcio ao ler sobre a descoberta do sítio arqueológico numa nota de rodapé de jornal.


Foto disponível em 01/02/2010 no site: http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_sitio_arqueo_pretos_novos.shtm

Escondendo a vergonha: Cemitérios para negros, pobres indigentes

Os documentos pesquisados também revelaram que no século XVII um pequeno cemitério junto ao Morro do Castelo, nos fundos da Santa Casa da Misericórdia, destinava-se aos escravos africanos, seus descendentes, indigentes e pobres que morriam no hospital. Como em 1700 este cemitério já não comportava o grande número de sepultamento de escravos, o governador do Rio de Janeiro, Ayres de Saldanha Albuquerque Coutinho Matos e Noronha (1719-1725), determinou que fosse criado um cemitério somente para pretos novos no largo da Igreja de Santa Rita, recém-criada, o que foi feito. Por volta de 1769, o vice-rei, Marquês do Lavradio (1769-1779), ordenou a mudança do mercado da Rua Direita, na Praça XV, para a Rua do Valongo (hoje Camerino). Ele não queria que os escravos no estado lastimável em que se achavam ao desembarcar fossem vistos na entrada principal da cidade. E quando o mercado de escravos foi transferido para a Praia do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos foi junto, porque a proximidade com o porto facilitava o transporte dos corpos.

Clamor da sociedade – Em 1821, o Cemitério dos Pretos Novos já estava cercado de casas, e os moradores começaram a reclamar com o príncipe regente D. Pedro e outras autoridades dos “males à saúde” e do mau cheiro que exalava dos corpos insepultos. De acordo com documentos encontrados por Júlio César no Arquivo-Geral da Cidade, no dia 13 de março de 1830 foi feito o último sepultamento no Cemitério dos Pretos Novos.


Foto disponível em 01/02/2010 no site: http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_sitio_arqueo_pretos_novos.shtm


Na opinião do historiador, o fim do cemitério não foi determinado apenas pela pressão higienista, clamor da imprensa e dos moradores. “A hipótese mais aceita”, disse, “é a de que, após o acordo que proibia o tráfico negreiro firmado com a Inglaterra (a famosa “lei para inglês ver”), o Brasil não teria como justificar a existência do cemitério de recém-chegados da África.”

Irmandades – Segundo Júlio César, “o Cemitério dos Pretos Novos é exemplo dos muitos sofrimentos impostos por um sistema escravista, em que milhares foram sepultados sem ter o direito aos preceitos das culturas tradicionais africanas”. Os que conseguiram sobreviver, no entanto, se filiaram a irmandades negras, que arrecadavam recursos e garantiam aos compatriotas enterros em condições mais dignas.


Um novo sentido à vida


A descoberta do sítio arqueológico sob o chão que pisava mudou completamente a vida da família Guimarães: Merced, Petrúcio e três filhas. Até 1998, eles conviveram com buracos em toda a área interna e nas laterais da casa, e com gente entrando e saindo. Quando as pedras começaram a rolar das paredes escavadas, o jeito foi mudar para o auditório da sua pequena empresa de prestação de serviços ao Porto do Rio, lá mesmo na Gamboa. E a todo tempo ouviam da prefeitura que a casa seria desapropriada.

Júlio César Medeiros da Silva Pereira, mestre em História Social pela UFRJ e Ana Maria Merced, proprietária da casa nº 36 da rua Pedro Ernesto. Foto disponível em 01/02/2010 no site: http://www.sintufrj.org.br/PORTALII/cemiteriodosPretosNovos.htm

Em 2000, não suportando mais a situação, os Guimarães retomaram as obras na casa. “Durante quatro meses eu e minhas filhas adolescentes peneiramos terra dos buracos e separamos ossos. Em 2001, as arqueólogas sumiram e até hoje ninguém mais voltou”, disse Merced. Os ossos foram levados para o IAB, e lá permanecem em caixas de papelão. Oficialmente, os estudos sobre o sítio arqueológico foram esquecidos.

Apesar de todos os transtornos, Merced se apaixonou pela história dos escravos enterrados na Gamboa e decidiu, sem contar com ajuda oficial ou de ONGs, expor as fotos dos ossos e artefatos desenterrados em grandes painéis na sua própria sala de visitas e abrir para visitação pública. Mais tarde, comprou duas lojas coladas à sua casa e criou o Instituto de Pesquisas e Memorial dos Pretos Novos [acesse o portal: http://www.pretosnovos.com.br/index.html ], que tem como diretores pessoas ligadas ao movimento negro da cidade, como Antonio Carlos Rodrigues da Silva. O espaço se transformou numa referência para esses militantes, artesãos e artistas plásticos. Na região, que além da Gamboa abriga os bairros da Saúde, Santo Cristo e os Morros da Previdência e da Conceição, a casa de nº 36 é uma referência da cultura afro, onde sempre são realizadas festas e cultos africanos, e lugar seguro para guardar objetos e outras relíquias da escravidão no Brasil. É comum se chegar lá e encontrar pessoas como Maria da Graça Lau e Cristina Sebastiana, legítimas representantes de grupos de jongo no Estado do Rio de Janeiro. Respira-se naqueles cômodos um cheiro forte de amor e fraternidade.

Fonte: http://www.sintufrj.org.br/PORTALII/cemiteriodosPretosNovos.htm


Sobre o Cemitério dos Pretos Novos veja também:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u40857.shtml

http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_cais_imperatriz.shtm

http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_sitio_arqueo_pretos_novos.shtm

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