A morte nos faz cair em seu alçapão, / É uma mão que nos agarra / E nunca mais nos solta. / A morte para todos faz capa escura, / E faz da terra uma toalha; / Sem distinção ela nos serve, / Põe os segredos a descoberto, / A morte liberta o escravo, / A morte submete rei e papa / E paga a cada um seu salário, / E devolve ao pobre o que ele perde / E toma do rico o que ele abocanha.
(Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII. São Paulo : Ateliê Editorial / Editora Imaginário, 1996. 50, vv. 361-372)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Assim na terra como no céu

Visão Geral do Cemitério São Francisco [o "cemitério dos pobres"] na cidade de Sobral, Ceará. Foto: Francisco M. E. Gomes. Novembro de 2007.


No Ceará, desaparecem túmulos do “cemitério dos pobres” e, com eles, importante registro do século XIX.

Por Juliana Barreto Farias
Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Seção "Em Dia", pág. 08, Edição nº 47, [01 de] Agosto de 2009.



HOUVE UM TEMPO em que os mortos conviviam muito bem com os vivos. As sepulturas ficavam no interior das igrejas e nos seus arredores, e os enterros eram realizados com muita pompa. Hoje, queremos a morte bem longe de nossas vidas. Tanto que pouca gente se preocupa com a preservação dos velhos jazigos. A cidade de Sobral, no Ceará, é um exemplo desse descaso: os túmulos do século XIX estão “sumindo” do cemitério de São Francisco.


“Ser enterrado ali era ser obrigatoriamente tachado de pobre, por isso muitos não se importam que os resquícios daquele tempo desapareçam. De todos os túmulos, apenas cinco têm inscrições do século XIX. Novas catacumbas foram construídas sobre as antigas. E os donos das sepulturas modernizadas, ao pintarem suas propriedades, mancham os túmulos antigos. Aos poucos, vamos perdendo janelas que mostram como morria a classe menos favorecida de uma sociedade tradicional como a sobralense”, revela o historiador Francisco Maurigélbio Estevão Gomes, autor de monografia sobre as práticas mortuárias na cidade.



Manchas de cal em uma das lápides do século XIX no Cemitério São Francisco, em Sobral, Ceará. Foto: Francisco M. E. Gomes. Novembro de 2007.


Como em outras regiões do Brasil, os moradores da pequena vila cearense costumavam ser enterrados, pelo menos até a década de 1850, no chão da matriz ou em suas redondezas. Era uma garantia de “bem morrer”, mantendo contato com os vivos e também com seus protetores divinos. O forte cheiro dos corpos em decomposição não incomodava os fiéis, mas médicos e autoridades sanitárias acreditavam que essas práticas poluíam o ar e propagavam doenças. Por isso, os sepultamentos nas igrejas começaram a ser proibidos.



Em Sobral, isso aconteceu depois que um surto de febre amarela se alastrou pela cidade, em 1851. Em pouco tempo, a Câmara Municipal autorizou a construção do primeiro “campo santo”. Inaugurado em 1857, o Cemitério de São José, como ficou conhecido, passou a abrigar os corpos dos moradores mais ilustres e também os das vítimas da febre. Só que os administradores locais acreditavam que a população ficaria mais protegida se os doentes fossem enterrados fora do perímetro urbano. Por isso, um novo cemitério, chamado de São Francisco, foi instalado numa área mais afastada da cidade.



Aspecto de muro com carneiros verticais no cemitério São Francisco, em Sobral, Ceará. Foto: Francisco M. E. Gomes. Novembro de 2007.


“Com o tempo isso, passou a ser entendido como: no São José se enterra quem pode arcar com a construção de um túmulo, ou seja, ‘os ricos’, e no São Francisco, ‘os pobres’. Até aí, pouco difere das demais cidades que também têm dois cemitérios, um para cada classe social. Mas, em Sobral, quase nada restou dos túmulos do São Francisco”, diz Francisco Gomes. E mesmo as catacumbas dos “mais ricos” foram perdendo estátuas, obeliscos e outros monumentos comuns ainda nas primeiras décadas do século XX. Agora, basta escolher uma lápide padrão e colocá-la à altura do chão. “Os novos cemitérios – quase sempre privados – procuram ‘serenizar’ o ambiente, deixando de lado aquele sentimento de homenagear o falecido com algo físico e pessoal. Hoje, a massificação vem igualando todos os jazigos”, completa o historiador.
Sobre polêmica acerca de plágio da reportagem acima veja o blog: "Revendo o Passado" do historiador Francisco Maurigélbio Estevão Gomes:

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