“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias póstumas.” Assim começa Machado de Assis em suas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, considerado por muitos a sua mais arrojada obra literária. Além de sua característica prosa de vanguarda, o livro contou ainda com um contexto bastante favorável. Publicado em forma de folhetim em 1880, a narrativa pós-morte de Brás Cubas surgia em um momento no qual o Brasil repensava suas políticas públicas sobre a morte. Na segunda metade do século XIX, as autoridades públicas brasileiras estavam preocupadas com a execução de um processo de modernização dos trópicos, o que clamava, necessariamente, por medidas sanitaristas e urbanísticas importantes, como é o caso da divisão espacial entre vivos e mortos. Até então, a Igreja era, inconteste, o lugar santo dos mortos, algo que os cemitérios logo viriam conquistar. Não sem alguma tensão, é claro. É sobre esse conflito, sobre esses novos projetos e ideologias que discute Vanessa de Castro Sial (foto) em seu interessante “Das Igrejas ao Cemitério”.
Tendo como estudo de caso as políticas públicas do Recife do século XIX, o livro é uma versão para a dissertação de Vanessa, elaborada entre 2002 e 2005 dentro do programa de pós-graduação em História da UNICAMP, sob orientação do historiador Sidney Chalhoub. No livro, publicado em 2007 com apoio de órgãos públicos da cidade de Recife, Vanessa problematiza um momento de transição das tradições envolvendo os mortos e os vivos, no Brasil. Pela força de autoridades públicas e com o respaldo científico de instituições emergentes, como a Sociedade de Medicina de Pernambuco, testemunhava-se no país a necessidade de construir cemitérios extramuros, uma tentativa de encerrar para sempre a prática de sepultamento nas igrejas, tradição esta que segundo os médicos sanitaristas da época apresentavam diversos problemas.
No século XX, a morte envolvia um ritual bastante complexo, bem diferente das práticas contemporâneas. Para que o morto conseguisse a graça de Deus, era necessário a integridade de seu corpo. Em outras palavras, isso significava testamentos, missas, doações, enfim, uma logística bastante imaculada no imaginário popular da época. O lugar dos mortos próximos aos vivos, entretanto, estava próximo de acabar. A onda modernizadora, inspirada principalmente nas academias francesas de ciência e medicina, queria levar os entes mortos das igrejas para os cemitérios. A comunidade científica estava convencida que os corpos em decomposição era uma séria ameaça (os famosos “miasmas” invisíveis) ao bem estar da população, devendo antigas práticas desaparecer por completo, junto com outros “problemas” urbanos, como os vagabundos, os bêbados e as prostitutas. Em alguns casos, essa mudança provocou uma verdadeira revolta. É o caso da Bahia, que testemunhou um rebelião popular, conhecida entre os historiadores como “cemiterada”.
Em Recife, mostra Vanessa, a higiene foi mais do que um projeto político, mas uma verdadeira ideologia. Empenhados em dar um fim a “morte barroca”, os médicos higienistas tiveram um papel de grande poder na sociedade pernambucana. A luta por uma disciplinarização dos sepultamentos, bem como de seus cadáveres, passava, por exemplo, pelo cumprimento da lei n.91/1841, que proibiu o sepultamento nas igrejas e exigiu a construção de um Cemitério Público do Recife.
Fotos: Imagens do livro "Das Igrejas ao Cemitério" de Vanessa de Castro Sial, 2007. Fonte on line: http://cafehistoria.ning.com/
Dentre outras questões, o livro de Vanessa, muito bem escrito e ilustrado na medida certa, expõe não só o ímpeto do projeto modernizador que varreu o mundo ocidental dos oitocentos, mas, sobretudo, a maneira como as idéias e ações (bem concretas!) desses projetos eram recebidas e encaradas pela população que, por sua vez, viu-se obrigada a redefinir e negociar suas crenças, nas palavras da autora, “adaptando suas visões escatológicas e soterológicas sobre o ato de morrer”.
Uma obra indicada para quem está bem vivo, “Da Igreja ao Cemitério” é o tipo de livro que pode ser lido em qualquer lugar, a qualquer tempo, como querem os bons livros. E isso sem despistar os que procuram por leituras sólidas e de vasto conhecimento. A melhor sugestão de leitura, talvez, que o Café História possa sugerir para as férias de verão.
(*Vanessa de Castro Sial é membro do Café História – acesse a rede: http://cafehistoria.ning.com/ )
[Dados sobre a obra]:
Páginas: 312
Ano: 2007
Editora: Secretaria de Cultura da Cidade do Recife
Preço encontrado: R$ 15,00
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